8.4.08
UM OUTRO JEITO DE ORAR

O que é oração? O que significa orar? Como funciona a oração? Essas são as perguntas mais comuns que articulamos sobre a esta atividade salutar . Mas a verdade é que, quando essas perguntas são construídas, já comportam em si a tentativa prévia de definir a oração dentro dos conceitos tradicionais. Contudo, essa foi, e continua sendo uma pergunta pertinente, que requer uma resposta coerente e adequada. Dentro dos círculos religiosos, as preposições por trás dessas perguntas são de que orações consistem em pedidos e intercessões dirigidos ao divino no intuito de movê-lo ou comove-lo a intervir nas crises pessoal e social de quem ora.

Para a maioria de nós, oração é uma força mágica que uma vez acionada pelo crente fervoroso e piedoso, têm o poder de fazer com que Deus atenda nossos desejos mesquinhos e egoístas. Ou seja, o crente ora, porque ele crê que, de alguma forma misteriosa, a sua prece têm a eficácia de impulsionar Deus, que de outra forma permaneceria inativo e omisso, se a sua a oração não fosse articulada. Por isso há oração pra tudo e todos os gostos: ora-se por “porta de emprego”, ora-se por “dente de ouro”, ora-se para que o “ministério cresça”, ora-se pra “Deus amarrar o inimigo”, ora-se até para dinheiro aparecer na conta inexplicavelmente. Existem até manuais de “oração eficaz” que ensinam o macete, a técnica infalível de “como” arrancar favores e bênçãos de Deus à força de rogos, orações fortes, promessas e sacrifícios. Para essa verve pragmática e utilitária, um Deus que não atende orações só pode ser um deus muito fraco.

No fundo, no fundo, por meio desse tipo de oração revelamos, de forma mais clara, algo funesto e assustador: acabamos por confundir o excercício sadio da espiritualidade cristã em práticas de feitiçaria evangélica. Acabamos por transformar a oração em magia e nós, em feiticeiros.

A definição do Aurélio, por exemplo, pode nos ajudar a entender este conceito:

Conjunto mais ou menos da saberes, crenças e práticas, relativamente institucionalizados dentro de um grupo social, e que dizem respeito à possibilidade de manipular certas forças impessoais e indecifráveis que se manifestam na natureza, na sociedade e nos indivíduos.[1]

Note que, conforme a definição, magia consiste basicamente na possibilidade de manipular forças mágicas e espirituais para determinados interesses afins através de práticas ritualísticas, palavras mágicas e outras articulações. E quem é o feiticeiro? É aquele que se utiliza desses rituais com o afã de acionar as forças misteriosas do além, sejam elas da natureza ou do mundo dos espíritos. Resumindo: sempre que alguém tenta, de alguma forma manipular, controlar, encantar, submeter realidades espirituais (no nosso caso – Deus), esse alguém está praticando bruxaria.

À guisa do que tenho dito até aqui, fica evidente que pode haver uma estreita semelhança entre a magia e oração, crentes e feiticeiros. Só se distinguem na forma, mas o conteúdo continua o mesmo. Tanto na magia quanto na oração o homem é movido pela esperança de que, de alguma forma, seu ritual, sua prece, sua magia será capaz de submeter à transcendência divina a alterar o curso dos eventos ao seu benefício particular ou comunitário. Em suma, toda técnica religiosa, que procura de alguma forma, manipular o divino, quaisquer que sejam elas, são em sua essência, feitiçaria. De forma que, quem aprende alguma técnica, alguma “oração forte” tentando captar um jeito de controlar realidades espirituais está, na verdade, praticando feitiçaria. E assim, acabamos por transformar a espiritualidade em religião do útil, da necessidade, do imediato, que busca Deus através da oração, seja ela qual for, para resolver os nossos problemas, nossas dores e crises, tão logo, acabamos por instrumentalizar Deus. O problema reside exatamente em que, na medida em que a técnica, a oração não funcionar de acordo com aquele quem ora, esse deus será descartado e substituído por outro.

Se o que acabei de dizer nos parágrafos anteriores encerra um mínimo de verdade, então meu caro, não podemos mais continuar repetindo fórmulas e expressões que, precipitada e acriticamente, chamamos de oração. Para uma linguagem religiosa que se pretende mostrar coerente, realizável e crível na conjuntura atual, pensar que Deus pode ser acionado através de rogos, súplicas e sacrifícios é, na menor das hipóteses, funesto.

Você no mínimo deve estar se perguntando: Será que o Iranildo ora? Se é que algum dia ele orou! Se você acha que eu não oro com base naquilo que escrevo - eu entendo, você não é a exceção da regra. Pois, afinal de contas, um “homem de oração” não ousaria escrever o que escrevo. Só posso ser mesmo um blasfemo louco, um herege dissidente, um ateu disfarçado. Imagine! Alguém duvidar do poder da oração! Só pode ter mesmo perdido a fé e, sabe lá Deus, o juízo.

Quando alguém pressupõe que eu não oro mais, como desconfiam alguns críticos “santarrões”, o que na verdade, eles estão querendo dizer é que eu não entendo nem pratico mais a oração da forma conforme eles entendem e fazem. É isso. Precisei buscar uma outra linguagem e uma nova compreensão que descreva o excercício que chamamos de oração. Digo isso porque a palavra oração está cristalizada e engessada pelo conceito religioso-hipócrita que se torna praticamente inassimilável e incoerente com o caráter de Deus.

Então eu oro. Oro diariamente. Oro como alguém que acredita no amor divino. Oro porque creio que essa atividade me possibilita a proximidade com o misterium tremendum. Oro porque há em mim aquela inquietação a qual fala santo Agostinho, que não se resolve enquanto não descansarmos em Deus. Oro não como um pecador “desgraçado” que se arrasta na busca da misericórdia de um juiz divino. Oro, mas oro como um filho amado que se aconchega nos braços amorosos de um Deus Pai-Mãe que me acolhe sem pedir explicações. Oro porque não é preciso dizer nada.

R. S. Thomas, poeta inglês do século XX escreveu um lindo poema. Suas palavras fazem eco no meu coração. Traduzem minha nova compreensão e minha outra maneira de orar. Leia com atenção:

Não como antigamente me ponho a orar,

Deus. Minha vida não é o que era antes...

Outrora teria pedido cura

agora vou ao médico,

teria permanecido muito tempo ajoelhado, discutindo, discutindo contigo

desgastando-te. Ouve minha oração, Senhor, ouve minha oração.

Como se fosses surdo, miríades de mortais têm sustentado seu estridente grito, explicando por sua própria inaptidão.

Começa a parecer que oração não é isso.

É a anulação de diferenças.

a consciência de eu estar em ti,

de ti em mim; o emergir da adolescência da natureza para a geometria adulta

da mente...

Por circular que nosso caminho seja, ele não retorna àquele jardim de serpentes

mas segue adiante para a cidade alta

de vidro que é o laboratório do espírito.

Pois bem, vou parar por aqui. Já é madrugada. Vou fazer uma prece. Mas direi poucas palavras...


[1] Dicionário eletrônico Aurélio.


"Jesus é bem diferente de um faquir ou de um mágico. O amor, não os milagres, é que constitui o essencial da sua mensagem"

Trecho do livro O Espírito do Ateísmo de André Conte-Sponville, São Paulo:Ed. Martins Fontes, 2008, p.65